Você sabe que o sol vai morrer, em quatro ou cinco bilhões de anos o sol
vai apagar, um gigante entediado vai apertar o interruptor do universo e
desligar a nossa luz para que possamos dormir, vai levantar o planeta
inteiro entre o indicador e o polegar e embalar o nosso sono na palma da
mão, vai desejar boa noite, dar um beijo e caminhar por cima das
estrelas até nenhuma mais conseguir brilhar.
Toda quarta-feira é dia do mundo acabar, todo mês tem um eclipse raro que só pode
ser visto a cada setenta anos, todo ano o inverno fica um pouquinho
mais quente - é o sol chegando mais perto para se despedir. E, talvez, o
mundo acabe em um sábado e não em uma quarta-feira, eu sei, que injusto
a gente ter que trabalhar a semana inteira sem qualquer apocalipse para
descansar os pés - e logo no sábado, sábado a gente tinha combinado de
tomar aquela cerveja. Fazer o quê?, imprevistos acontecem. Mas não dá
pra remarcar? Remarcar o fim do mundo?, não, não dá, vai ter que ser no
sábado mesmo. E a nossa cerveja? Pode ser na quarta-feira, o mundo ainda
vai estar lá, a gente senta na esquina do seu prédio e olha as estrelas
que não foram ainda esmagadas. Quarta-feira eu não posso, enquanto o
mundo estiver por aqui, eu acordo cedo no dia seguinte.
Não vou
conseguir dormir ou trabalhar essa semana esperando o sol ser levado
embora, vou subir no telhado e estender um cobertor para ficar bem de
olho nos movimentos da galáxia, não quero perder a melhor parte e ter
que assistir a reprise na televisão, quero ser expelida para uma nova
dimensão da primeira fileira, com ou sem emoção?, sempre com emoção e,
caso mude de ideia ou não tenha outros planos, vou guardar um lugar pra
você ver o fim do mundo aqui do meu lado.
Marina Louca Maia
22 de jan. de 2016
12 de nov. de 2012
Telefonema.
Você me liga e eu quero te contar do meu dia, a sua voz está fria e eu quero falar de amor.
Me esforço para que minha voz pareça tão indiferente e distante como a sua já é naturalmente, então falo exatamente o oposto de tudo o que estou pensando, só fico satisfeita quando a frase me parece bastante cruel aos seus ouvidos (acho que você aguenta), mas seu tom permanece inalterado, vejo que acha graça das minhas maldades, a sua risada morna esquenta a minha orelha pelo telefone, minhas crueldades de amor não têm efeito algum sobre você.
Quero entrar na sua voz. Quero morar na sua voz.
Quero gravar minhas iniciais com uma navalha nas suas cordas vocais - o nó que a gente deu ficou frouxo demais.
Eu gosto de te ouvir enquanto coleciono palavras. Sua voz é muito fácil de desmembrar. Antes mesmo de você ir embora eu já colecionava essas palavras. Estúpidas. Desesperadas. Viscosas. Essas palavras que eu sabia que deixaria de dizer. Tenho hoje tantas delas guardadas que me pergunto, com uma certa surpresa, sobre o que conversávamos.
Mas que tolice a minha, nós não conversávamos.
5 de nov. de 2012
Há De Se Entender Que
Quantos cigarros você acha que seriam necessários pra esquecermos todos os desequilíbrios? Quando não é você errando sempre aparece alguém pra cumprir seu papel de infrator. Não há o que sustente sua paz, você bem sabe que precisa de tudo de pernas pro ar, assim é mais fácil foder a vida, não existe aquela necessidade chata de ficar gastando os músculos, causar contusões, convencer através da força pra ela te dar sem gritar, contar pro irmão mais velho, o pai e depois sofrer com a sua cabeça sendo cortada com a faca de mesa da mãe.
Você sorri, claro, é educado, tenta se vestir bem, mostra qualidades, os defeitos escreve em cadernos e depois queima cada folha chorando, como se colocasse fogo em seus próprios membros. Porque não ateia fogo em si mesmo? Se é tão bom em suportar e fingir, vamos fazer de conta que é alguma muçulmana suicida. Exploda seu crânio junto ao botijão, se destrua primeiro antes que estrague a vida de mais alguém.
As pessoas te olham torto na rua como se conseguissem torcer seu pescoço só de te ver passar, você torce pra que elas te esqueçam, não tem como cobrir os cortes na cara de raspão, todas acordam e já vão escovar os dentes, encaram no espelho as cicatrizes que você criou.
E as suas? As transplanta também pra poemas cheios de metáforas bonitas e depois os engole? Da descarga ou enterra no jardim? Seu cachorro não aguenta mais cavar o gramado, enfileirar as desgraças que você fez. Comece a esquecê-las na gaveta como suas coleções antigas, já que pra você são apenas dores passadas.
29 de out. de 2012
Seu Perfume
Comprei um vidro do seu perfume e encharquei a minha casa de você, derramei você nos livros, nos travesseiros e nos lençóis, te derramei nos sapatos e te deixei grudar nas minhas meias, te espalhei pelos cabelos e pelas dobras do corpo, te misturei nas fontes de água e tomei banho com você, tomei banho de você. Tomei esse banho e depois não tomei nenhum outro mais, deixei o seu cheiro ressecar e formar crostas, deixei você cair da minha pele e virar poeira, parei de varrer a casa e tudo o que eu tenho virou também poeira.
Pensei que não era o bastante e resolvi te derramar ainda nas minhas roupas, nas roupas dos meus familiares, dos meus amigos, nas roupas que ficam expostas nas vitrines das lojas, nos tecidos sem forma que irão tornar-se roupas, nos fios de náilon, nas crianças chinesas, nas plantações de algodão, na máquina de lavar. Quero sete bilhões de pessoas cheirando à você. Quero sete bilhões de você cheirando à pessoas. Quero você cheirando à você, já gastei todo o perfume.
25 de out. de 2012
Autópsia.
O abdome é dividido em nove quadrantes, os médicos delimitam previamente as linhas do esquartejamento, sobra aos assassinos pouco ou nenhum trabalho. Quero que você vá descendo a lâmina afiada da sua faca na linha imaginária marcada pelos mamilos, aproveite e roube, através deles, minhas melhores endorfinas batidas no leite. Quero que vá rasgando a pele aos poucos, isso, sem medo, sem deixar a mão tremer enquanto me corta, sem limpar o sangue que escorre, meu último desejo é sujar os seus sapatos.
Pela dor que eu sinto você já fez duas linhas verticais, dividiu meu corpo em três, mas as doenças são muitas, são necessários espaços menores para examinar alguém com precisão, não se preocupe, estou aqui para te ensinar, vou mostrar exatamente o que você tem que fazer. Seguro sua mão para te ajudar a abrir os dois últimos talhos horizontais, o primeiro bem na crista da bacia e o outro começando logo abaixo das costelas, imagino que você esteja pensando em como elas ficariam uma delícia defumadas e regadas ao molho de churrasco, queria que tivesse me avisado da sua antropofagia antes que eu te permitisse tomar conta da minha autópsia.
Pronto, estão aí expostos os nove pedaços de mim que você desconstruiu, quero que me diga qual deles apresenta o maior grau de macicez, só não repare essa discreta distensão ali no meio, bem aonde você apoiou a mão trêmula, cansada de tanto me dilacerar, é o resultado de todo o ar que engoli junto com as palavras que tanto ensaiei, mas que fiz questão de não te entregar.
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